domingo, 13 de fevereiro de 2011

O STF e o furto de cinco galinhas



Foi noticiada esta semana decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), a qual absolveu um cidadão aplicando o chamado “princípio da insignificância”, da acusação de furto cuja “res” era, nada mais, nada menos, do que cinco (5) galinhas e dois (2) sacos de ração.
Sim, caro leitor, cinco galinhas e dois sacos de ração! E a decisão foi do STF, aquele tribunal que deveria decidir as mais complexas discussões constitucionais brasileiras.

Não consigo deixar de perguntar: quanto tempo teremos de suportar decisões sem sentido, tendo que ser tomadas pela mais alta corte do país, que tantas outras questões relevantes tem de decidir? Quanto tempo mais veremos o Direito Penal ser massacrado em seus princípios? Quanto tempo ainda permanecerá a incompreensão sobre o princípio da insignificância? Até quando teremos de conviver com a míope e imbecil mentalidade retributivo-taliônica de aplicação da lei penal, que vê a conduta num verbo e não em sua complexidade humana, já passado mais de um século da teoria do tipo? Quanto tempo ainda para se perceber que a punição nesses moldes não soluciona o problema da criminalidade, que bate a nossas portas cada vez mais intensamente?
Veja, caro leitor, a síntese do caso divulgada na mídia.

No dia 30 de setembro de 2002, um caseiro gaúcho conhecido como "Garnisé" aproveitou a pouca vigilância do patrão e furtou da propriedade, em Porto Alegre, cinco galinhas e dois sacos de ração, avaliados em R$ 286,00. "Garnisé", então com 26 anos, foi denunciado em 2006 sob a acusação de "subtrair coisa alheia móvel" (artigo 155 do Código Penal), crime passível de pena de um a quatro anos de prisão e multa. Ressalte-se que as aves e a ração foram devolvidas.

Mesmo assim, o fato mobilizou o Judiciário brasileiro por oito anos, encerrando-se a ação penal pelo trancamento somente em novembro último pelo Supremo Tribunal Federal.
A 2ª Turma do STF acompanhou, por unanimidade, o voto do ministro Ayres Britto, que reconheceu a "inexpressividade econômica e social" do furto. E mais: ressaltou que a coisa furtada já havia sido devolvida. Ayres Britto entendeu que não era o caso de "se mobilizar a máquina custosa, delicada e ao mesmo tempo complexa" do Judiciário, para, afinal, "não ter o que substancialmente proteger ou tutelar", pois as aves e a ração haviam sido restituídas.

O processo tomou corpo por dois aspectos polêmicos: o primeiro de natureza processual, pois a juíza competente rejeitou a denúncia (não aceitou a acusação) liminarmente e a promotoria recorreu, entendendo que não poderia haver absolvição antecipada – ou seja, dizendo que se tem que processar primeiro e absolver,se for o caso, depois, independentemente do assunto e da situação tratada, do custo do processo, da movimentação do Judiciário, do peso da acusação sobre o réu e do peso que a própria vítima carrega ao ter de acompanhar, mesmo à distância, o andamento do feito. Dane-se tudo! Processo é processo – primeiro se faz, depois se pensa. Salve a burocracia!

A segunda polêmica foi a aplicação do princípio da insignificância. Este pobre princípio... Aliás, que quer dizer princípio mesmo? Ah, qualquer postulado que expresse uma idéia? Não, caro leitor, princípio é o que organiza o centro de determinado sistema. Numa casa, princípio não é o alicerce; é o ponto de apoio dele. O alicerce decorre do princípio onde é colocado o apoio. Princípio é a proposição que uma vez questionada revela a mais fundamental estrutura de um sistema.

Continuando, dizia que princípio da insignificância é também chamado de bagatela, ou melhor, alguns chamam de delito de bagatela aquele que decorre do princípio da insignificância. Aqui já se verifica a mentalidade patrimonialista tão arraigada no direito penal pátrio: o valor é financeiro, monetário, tem que ser expresso em dinheiro. Qual dinheiro? Uma relação com o salário mínimo, esse grande indexador, que reflete muito a realidade brasileira – veja-se a discussão atual para se estabelecer um valor de referência.
Não época do caso “Garnisé” o valor do furto era R$ 86,00 mais elevado que o valor do salário mínimo, assim, o furto não podia ser “insignificante”, segundo alguns, porque envolvia patrimônio expressivo, pois era mais que o salário mínimo. Esta teoria é tão sem sentido que basta se verificar o custo de um processo para ver se vale os R$ 86,00.

É obvio que a situação da vítima tem de ser verificada. Se ela tiver só cinco galinhas – pois muitos, infelizmente neste desgraçado país de ilusões, vivem com um salário mínimo – o patrimônio tratado é 100% do que ela possui. Logo, o valor é relevante, não monetariamente, mas porque retirou tudo, a totalidade do sentido patrimonial da vítima. No caso, as galinhas e a ração foram devolvidos. Não houve prejuízo.

Não quero me alongar, então vou direito ao ponto: princípio da insignificância não pode manter uma relação de medida com valores monetários (isto é visível em crimes tributários, pois pode ser aplicado o princípio da insignificância em questões cujo valor seja da ordem de R$ 10.000,00 – a relação aqui não é com o salário mínimo, mas com o valor que a Receita pode cobrar do contribuinte numa execução judicial).

Insignificância quer dizer “não ter significado”. Que coisa mais estúpida de se dizer! Mas é verdade: não ter significado, este é o ponto.

Que é não ter significado? É esta pergunta que tem de ser respondida. Ela tem a ver com a questão tratada na chamada filosofia da linguagem, na linguística, na psicologia moderna, na criminologia crítica, saberes que permeiam o direito penal moderno, já desde o finalismo – escola que completará em breve 100 anos de existência – e que questiona a ação humana como algo não mecânico, como algo provocado, motivado, desejado. Ao lado dessa escola, há o chamado funcionalismo, que também questiona a ação humana, já especificamente sobre o viés da linguagem. A ação social não é fruto de uma racionalidade técnica, instrumental. Ela advém da complexidade da estrutura do humano.

Significado é aquilo que faz o humano viver, que lhe dá sentido, de onde ele retira sentido. Sentido para si, mas também para e no ambiente social que ele habita. Significado é o que compõe o horizonte do humano e o mantém vivo. Significado é sinônimo de vida.

Quem sabe um dia entendamos o significado.

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