quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

E não é que é?

Represa de Salesópolis (SP)


O Presidente Lula esteve no Rio de Janeiro ontem.  Visitou o Complexo do Alemão.  Pensei no Lula, na vida, na invasão do Alemão, nos militares.  Não que uma coisa tem a ver com outra coisa.  Afinal, uma coisa é uma coisa...

São Paulo, final dos anos 1970.  Embora o país já emitisse sinais que apontavam para o final dos tempos de ditadura, muita apreensão ainda havia no ar.  Movimentos grevistas aconteciam no ABC.  Estudantes se movimentavam em direção ao sindicalista barbudo.  Entre eles, a nossa turma de amigos composta, em sua maioria, por alunos da USP, PUC, FAAP.

Berto Tenca, meu pai, privado do sonho caipira do quintal de terra, tinha uma horta com três ou quatro canteiros sobre uma laje, nos fundos da casa.  Orgulhava-se dela.  

Seus filhos, não menos caipiras, acabaram influenciando os amigos no hábito de acampar e pescar.

Em um dos tantos acampamentos que fizemos, Berto nos pediu que trouxéssemos dois ou três sacos de esterco de vaca para a sua horta.

Fomos para Salesópolis, às margens de uma represa.  Sempre havia pescadores por ali, e não raro, portando grandes redes de pesca.  Redes já eram proibidas e a Policia Florestal batia a região frequentemente.  Redes, para quem não sabe, geralmente são transportadas em sacos.  Estopa ou ráfia, ou mesmo plástico.  E quando grandes, enchem literalmente o saco.

Segundo dia de acampamento.  Wagnão, logo ele, um dos mais espirituosos e zombadores do grupo, havia se incumbido quase que solitariamente da dura tarefa de recolher esterco.  Saco cheio, nada mais justo que o usasse feito banco.  Tomou posse.  Gordinho, não precisou mais do que duas ou três sentadas para que o conteúdo se achatasse.  Redes ou esterco, ensacados e achatados, muito se assemelham.

E vem a polícia.  Assustamos.  Muita tensão.  Ideais militares, especialmente à época, não combinavam com um grupo de universitários.  Mesmo com uma postura menos agressiva da Polícia Florestal, havia animosidade.   Havia farda. 

Cumprimentos feitos, fomos indagados primeiramente sobre armas.  Não as temos, respondemos.  Viemos apenas descansar e pescar.  Palavra mágica.  Redes?  Não as temos, pescamos apenas com varinhas de bambu.  Negativa recebida, olhares militares varreram a área de acampamento até se fixarem em Wagnão e seu saco, sobre o qual permanecia praticamente imóvel, atento.

-  E nesse saco, o que há?
- Olha, o senhor não vai acreditar, mas aqui dentro tem bosta de vaca que juntamos    ontem e hoje pelo pasto afora.
-  Ah, bosta de vaca... 
-  É pro pai daquele ali...  Vai colocar na horta que tem sobre a laje da casa.
-  Horta sobre a laje...
-  Sim, pode parecer mentira, mas acredite.
-  Acredito, claro... O senhor vem pescar a 60 km de casa e aproveita para levar um saco de bosta de vaca para o pai dele colocar na horta...  Que fica sobre a laje...

O militar olha para o outro, ambos para o saco, respira fundo, estampa na face o ar de autoridade acima de qualquer questionamento e caminha na direção do Wagnão, enquanto pede para que ele se levante.

Para nós uma estranha e ao mesmo tempo deliciosa sensação, uma vergonha de presenciar a vergonha.  Uma gargalhada ainda contida se mantinha silenciosa entre o esôfago e a garganta de cada um.   Tentamos ainda dissuadi-los.  Em vão.  Para eles, as evidências superavam os argumentos.

E como um ator em cena de suspense, calmamente ele abriu a boca do saco com ambas as mãos, com a convicção de quem teria apenas de determinar o tamanho da malha da rede.

Conferiu.  Face paralisada numa expressão desenxabida, desviou o olhar para o outro militar e concluiu:

-  É bosta mesmo!